CAPÍTULO 1: CRISE
1.1 Habitação e cidades
Nas últimas décadas, assistimos a uma transformação notável na relação entre as pessoas e os lugares onde vivem, impulsionada em grande parte pela digitalização do trabalho e pela crescente conectividade global. Ao contrário do passado, quando a localização do emprego era o principal fator na escolha de residência, hoje muitos trabalhadores têm a flexibilidade de escolher onde viver com base em diversos critérios, incluindo qualidade de vida, custos habitacionais, infraestrutura urbana e acesso a serviços.
A possibilidade de trabalhar remotamente é uma proposta interessante para profissionais, especialmente aqueles que se sentem atraídos por cidades com boa infraestrutura digital e elevada qualidade de vida, como Lisboa e Porto. Este fenómeno tem o potencial de aumentar a procura por habitação nessas áreas, o que pode elevar os preços de arrendamento e compra, deslocando residentes para zonas periféricas com menos infraestrutura. Portanto, é importante reconhecer que a digitalização do trabalho não resolve necessariamente a crise habitacional, mas destaca as desigualdades entre aqueles que podem escolher onde viver e os que estão limitados por suas condições socioeconómicas.
1.2 A Europa e o mundo
A crise habitacional nas grandes cidades europeias e globais é resultado de uma combinação de fatores que transcendem fronteiras nacionais, e seria benéfico considerar uma variedade de soluções para abordar este problema complexo. É justo dizer que o aumento do turismo, a imigração e a especulação imobiliária globalizada contribuíram significativamente para a inacessibilidade da habitação. Cidades como Amsterdão, Copenhaga e Viena estão a experimentar uma pressão considerável no mercado imobiliário, impulsionada pela procura de residentes, migrantes e investidores estrangeiros. Isto levou a que a habitação se tornasse uma mercadoria global.
Em metrópoles como Londres, Nova Iorque e São Francisco, a habitação tornou-se cada vez mais difícil de suportar para as classes média e baixa, devido à procura internacional e ao investimento especulativo. Não é incomum que investidores estrangeiros comprem propriedades com a intenção de mantê-las como ativos financeiros, o que pode reduzir a oferta disponível para os residentes e aumentar os preços. Além disso, o influxo de turistas em cidades como Barcelona, Florença e Veneza levou a uma mudança no uso de propriedades residenciais, com muitas a serem convertidas em alojamentos temporários. Isto, por sua vez, provocou um aumento nos custos habitacionais e a deslocação de residentes para as periferias.
A migração também apresenta um desafio para o mercado habitacional. Cidades como Estocolmo, Munique e Zurique têm recebido um número crescente de migrantes, o que levou a uma situação em que o mercado imobiliário está sob pressão e há escassez de habitação acessível. Apesar da existência de políticas habitacionais avançadas, estas cidades estão a encontrar dificuldades para acompanhar a crescente procura, criando um ciclo vicioso que torna difícil controlar efetivamente o mercado habitacional.
1.3 O Paradigma Português
No seguimento da crise económica global de 2008, Portugal enfrentou mudanças significativas no seu panorama económico e no mercado habitacional. A recessão levou a um período de inatividade no setor da construção habitacional, resultando numa escassez que persiste mesmo com a recuperação económica. A fase de recuperação foi marcada pelo crescimento do turismo e pelo programa dos ‘Vistos Gold’, que atraiu investidores estrangeiros para o mercado imobiliário, especialmente em Lisboa e Porto. Poder-se-ia argumentar que estes programas incentivaram a compra de imóveis para investimento especulativo ou como segunda residência, contribuindo para a escassez de habitação acessível para os residentes locais.
O aumento do turismo, particularmente através de plataformas como o Airbnb, levou à conversão de muitas propriedades residenciais em alojamento temporário, contribuindo para o aumento dos preços de aluguer nas áreas centrais e históricas. Isso resultou na gentrificação de bairros e na deslocação das populações locais para a periferia. Além disso, a falta de uma política habitacional robusta e de incentivos para a construção de habitação acessível contribuiu para a crise, com programas limitados de habitação social e iniciativas governamentais insuficientes para atender à crescente procura.
Embora Portugal tenha um custo de vida mais baixo em comparação com muitos países da Europa Ocidental, o país enfrenta agora uma das maiores disparidades entre rendimentos e custos habitacionais, o que coloca muitos cidadãos, especialmente os mais jovens, em situações habitacionais desafiadoras.
1.4 Políticas Tradicionais
É reconhecido que as políticas habitacionais tradicionais, introduzidas com a intenção de facilitar o acesso à habitação, geraram infelizmente algumas consequências negativas não intencionais que contribuíram para a crise habitacional em Portugal e noutras cidades europeias. Este capítulo visa proporcionar uma análise aprofundada de três aspetos principais que poderiam ser vistos como tendo um impacto negativo.
- Controlo de Rendas: Poder-se-ia argumentar que políticas de rendas inflexíveis podem, inadvertidamente, desencorajar a manutenção e renovação de propriedades, o que pode levar à degradação da qualidade do parque habitacional. Na Baixa Pombalina, em Lisboa, rendas que permaneceram inalteradas durante décadas resultaram, infelizmente, em muitos edifícios históricos vazios e necessitados de reparação, o que teve um impacto negativo na qualidade de vida urbana.
- Construção sem Planeamento Adequado: Seria benéfico considerar formas de garantir que a expansão habitacional seja devidamente integrada com infraestrutura e serviços públicos, para evitar a criação de áreas urbanas desconectadas e insustentáveis. Regiões como Amadora e Vila Nova de Gaia enfrentaram desafios relacionados com o congestionamento de tráfego e uma maior dependência de transporte privado, o que pode ter contribuído para a deterioração da qualidade de vida dos residentes.
- A concessão de subsídios: Os subsídios habitacionais, introduzidos com a intenção de aliviar a pressão sobre os preços de aluguer, beneficiaram em alguns casos grandes investidores em detrimento dos pequenos proprietários. Há também preocupações de que não aumentaram a oferta de habitação acessível. O programa ‘Reabilitar para Arrendar’ foi alvo de algumas críticas, com preocupações sobre a distribuição desigual dos recursos e o impacto potencial na especulação imobiliária e no aumento dos preços.
Em suma, as políticas habitacionais tradicionais em Portugal contribuíram para a deterioração do parque habitacional, a criação de áreas urbanas insustentáveis e a perpetuação da especulação imobiliária, o que agrava os desafios no enfrentamento da crise habitacional.